quinta-feira, 8 de março de 2018

MADALENA


a mulher menstruou dois filhos,
hoje, antes do café da manhã.
no lençol ardia aquele velho
poema que ela teve que lavar
para não ser julgada durante
a temporada de caça às bruxas.
o marido tinha deixado uma
rosa de sangue em seu rosto
dizendo para que ela lembrasse
o fim do verão no dia de hoje.
algumas lágrimas cruzaram
o chão aonde os seus pés
caminhavam para não voltar.
o quarto do bebê cheirava
a arroz queimado e os brinquedos
da sua infância ainda tinham
as marcas da sua tristeza.
a mulher fechava a porta de casa
e trancava-se por dentro,
com o mal estar das palavras
rasgadas ontem ao anoitecer.
o porta-retrato da mãe
jazia ao lado do criado mudo
e muda ela estava diante
daquele sorriso maternal de
incômodo desespero.
era mais um dia para arrumar
a mochila dos filhos,
esta carregada de cadernos
em branco e com páginas de luto.
tudo parecia se repetir.
o tapa que dava para matar
a mosca seca era uma forma
de se libertar das inquietações
frutíferas que apodreciam
no ventre vazio, nos olhos vazios.
ela limpou no forro da mesa
suas tristes cantigas de ninar.
sentia-se suja e citava deus
sem ao menos acreditar.
estava ela presa como eurídice
ao inferno do seu cotidiano.
na tv um homem sorria ao discutir
sobre o mercado de trabalho,
gabava-se de gerir uma fábrica
de mulheres. em outro canal
havia denúncias contra ela ou
sobre milhões e milhões dela.
a mulher laborava um arrependimento.
a casa, seu útero machucado,
era invadida por fantasmas.
não havia distância entre a porta,
a dor, a mala, a raiva, o homem.
mas ela não conseguia prosseguir.
prendia-se ao espelho maquiando
o silêncio ininterrupto do rádio
consumido pelas formigas.
varria os hematomas jogando
para debaixo do tapete novos sonhos.
a louça equilibrava-se sobre as costas
da mulher do próximo. pensava.
penava: "olhai por nós, pecadores".
o coração envelhecido acotovelava-se
entre as frágeis costelas, tal qual
um animal amuado de incertezas.
havia uma dor verdadeira em seus
lábios trancados, nas mãos nodosas
esquecidas no fundo da geladeira.
ouvia da rua diversas mães
gritando pelos seus bebês.
e todo aquele sangue. todo aquele
sangue dentro do filme tedioso
que passava pela sua cabeça.
hoje a mulher tinha um funeral
para ir e por isso cozinhou
os ovos no suor do umbigo.
ela queria ter um sorriso inventariado,
mas a herança era uma aldeazinha
desbotada numa máquina de lavar.
a mulher queria construir um
novo universo, alugar um lugar
na história, com a certeza de dizer
que não aceitaria mais as injustiças.
pediria ajuda aos netos do futuro.
ela era melhor, bem melhor,
do que aquele macho mal-acabado.
nos seios corajosos e adoçados
de leite poderia extrair a sua força.
o vento de praia ia empurrando
aos cantos da casa os descuidos
dos filhos e sua solidão feito
um imenso bombardeio.
o sol que entrava tímido
pelas frestas da sua blusa
esquentava o medo e secava
a ferida deselegante.
ela queria deixar agora só entrar
pelo corpo as carícias da liberdade.
desejava fumar seu cigarro
em paz e bater as cinzas
no vaso das violetas,
antes de ser novamente fuzilada.
daria fim ao marido de noite.
a foto despojada do casamento,
nas cascas da parede,
dava o engulho das grávidas
e mostrava a gravidade nua dos curativos.
Isso haveria de mudar.
os cincos reais miúdos sobre a mesa
era o vestuário cafona do machismo.
Madalena resolveu desacordar
os homens com seu grito de guerra.
sairia da acomodada e agressiva
vida. ia cuspir pelos pratos,
ia masturbar pelos cômodos,
ia se vestir de luta e sair descalça
para ser falada pelo mundo e igrejas,
ia fazer um jantar à luz de velas
e temperar com a menstruação
o macarrão que serviria
para saciar toda a família,
com o sangue guerreiro que
continua a crescer e a lhe
fazer uma mulher imortal, livre
e simplesmente irreconhecível. 

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